Esse estranho comportamento se deve ao fato de que nossos corpos não são feitos só de carne e sangue; eles são feitos de palavras. Os moluscos têm corpos moles. Falta-lhes um esqueleto. Como proteção, eles produzem conchas duras dentro das quais se fecham.

Nossa concha é sagrada. Na verdade, aquele mundo a que damos o nome de sagrado é feito com as partes da nossa concha de palavras. Ai daquele que tentar negar, contestar, destruir uma dessas palavras! O corpo inteiro se mobiliza para a batalha. Ou para a retirada. Retirada é também uma tática de guerra. Tapar os olhos, entupir os ouvidos, recusar-se a pensar. Pensar é muito perigoso. As Sagradas Escrituras relatam um sonho em que aparecia uma estátua enorme, de ferro, com pés de barro. Basta um pé de barro para que a estátua caia. O perigo do pensamento está em que ele venha a revelar que nossa estátua de ferro tem pés de barro: nossa concha é feita de gelatina. Se isso acontecer já não mais conseguiremos dormir em paz. Compreende-se, portanto, que contrariamente ao que disse Aristóteles, a nossa tendência natural seja a de evitar conhecimento. Os homens, naturalmente, esforçam-se por não conhecer.
O corpo é sagrado. E sagradas são todas as coisas que estão vitalmente ligadas a ele. Pensar uma palavra sagrada é correr o risco de trincar a concha dura que protege o nosso corpo mole. Coisas sagradas que não devem ser pensadas são ídolos. Ídolos não são para ser pensados. Ídolos são para ser adorados e usados. Compreende-se, portanto, a tendência das pessoas religiosas de se recusarem a pensar sobre suas idéias. Suas idéias religiosas - e portanto os seus deuses ficam fora do exercício do pensamento.
Mas eu não posso respeitar deuses que me proíbam o exercício do pensamento. Um deus que não

Rubem Alves
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